ROSTOS RASGADOS
Junho/2010
Eu era ainda muito menina, quatro ou cinco anos. Lembro-me das cenas que estimulavam uma raiva que se fazia manifestar em forma ferina:minhas unhas aguçadas por um sentimento inquieto: o de detestar o rosto das pessoas. Eu sentia uma imensa vontade de desfigurá-las de sua vestimenta de pele, de expressão, de olhar, de bocas e narizes condizentes ou desarmônicos com a estrutura facial que me provocava tamanha desordem estética e ética. Não concordava com aquela composição visual dos rostos. Eu queria saber mais, mais do que o rosto me mostrava sobre as pessoas. Queria saber desmenti-las ou encontrá-las por trás da pele. E então eu avançava com minhas unhas no rosto das pessoas. Minha vitima predileta era meu irmão. Ele ficava com o rosto todo arranhado e se escondia cabisbaixo embaixo de um boné, envergonhado, ou consigo mesmo, por ter sido descoberto, ou por ter uma irmãzinha tão desprovida de critérios da polidez e conformismo humanos. Temia me entregar para nossa mãe e ela me castigar por obra tão grotesca e impiedosa. Ele se recuperava aos poucos, e aos poucos eu ia reconhecendo o traçar de minhas unhas nas linhas do rosto dele. Arrependia-me? Por algum tempo sim, mas depois que a sensível pele encontrava-se restituída, eu, novamente, provocava outros sulcos de uma profundidade que nem eu sabia do que se tratava. Eu me determinava uma condição, mas não sei bem de que tipo. A condição era arrancar o rosto das pessoas. Mas através da desfiguração da face, o que eu queria realmente saber sobre elas? Talvez quem realmente são, foram e seriam através do ferimento, do sangue, da dor, do expressionismo literal de suas reações, da forma caricatural que os seres humanos se formam e se deformam desde crianças. Como saberia eu quem são sem o aval da índole desmitificada?
Eu queria saber se as pessoas, ao recobrarem sua pele, mudariam de cara, ou permaneceriam ensangüentadas, mostrando-se em carne nua. Será que teriam outros rostos embaixo daquele que eu tanto queria desfigurar? Se os rostos podem mostrar o tempo da humanidade em suas rugas de expressão, em seu olhar menos ou mais cintilante, em sua higiênica e vaidosa dissimulação, como poderia eu, ainda tão criança, ser cruelmente tão curiosa? O que fazem com os outros rostos que guardam dentro de si, pensava eu e tentava assim, portanto, resgatá-los de seus esconderijos existenciais.
Se os filhos podem se parecer com os pais, que graça teria possuir um rosto próprio para ser comparado ou com o genitor ou com a genitora? Que tipo de pessoas são elas, mesmo sendo pais e mães? Eu queria mais que semelhanças, eu queria a carne viva, ensangüentada, um feio que me pareceria mais honesto.
Contudo deveria eu, por estar em lúdica infância, tentar encontrar princesas e príncipes encantados naqueles rostos que deveriam ser vistos puerilmente. Mas não. Eu não conseguia ver isso. Imaginava quão duro era para uma pessoa ter que conviver com seu rosto o tempo todo. Olhar-se no espelho cotidianamente e reencontrar-se em forma de imagem, em uma representação desleal, desigual, invertendo a lateralidade facial, física e moral, especificamente. Eu detestava precisar olhar para o que as pessoas me mostravam através de seus rostos.
Eu achava que a pele do rosto era tão fina, como um papel de seda que se rasga e se amassa com breve pressão, mas não, era necessária força e determinação para ultrapassar essa fina camada e encontrar a carne sedenta pelas minhas unhas afiadas e destemidas. Era preciso uma postura revolucionária com a expressão humana.
Eu queria encontrar o não-rosto, aquilo que não oscila entre a verdade e a mentira, aquilo que se descarna diante de mim.
A. Cristiane Candido
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