sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

A África Dos Intelectuais Brasileiros
A construção de imagens da África
A África
Na segunda metade do século XIX, nos Estados Unidos, um afro-americano, padre episcopal, formado na Universidade de Cambridge, chamado Alexander Crummell, falava de um "grande e nobre trabalho" e de "uma convocação natural" que a África fazia aos negros. Uma coletânea de seus trabalhos foi publicada em 1862, intitulada The Future of Africa (O Futuro da África), trazendo textos que se preocupavam com o futuro de um continente ao qual procurava dar uma identidade e um destino comum: a África seria a pátria da raça negra. Teve início o discurso do pan-africanismo.
Kwame Anthony Appiah, na obra Na Casa de Meu Pai, assim comenta as intenções de Crummell: "Para ele, o que tornava a África unitária era ela ser a pátria dos negros (...) ele pensava no povo da África (em termos que o nacionalismo do século XIX tornava naturais) como sendo um único povo, a ser concebido, à semelhança dos italianos ou anglo-saxões, em certo sentido, como uma unidade política natural". (p. 22).
Mesmo já tendo se passado mais de 150 anos e o pensamento de Crummell ter sido bastante discutido, aprimorado e transformado, trazendo com isso uma preocupação fundamental na formação de sociedades que possuem afro-descendentes, na América e, especificamente, no Brasil, pouco ou nada desse debate fez parte da formação universitária da maioria de nossos professores de História e, por conseguinte, dos alunos do ensino fundamental e médio. É possível (e gostaríamos de supor) que esse questionamento esteja aparecendo, meio tímido ainda, nas universidades brasileiras, depois da Lei nº 10.639 (2003) que tornou obrigatório o ensino de história e da cultura afro-brasileira.
Porém, mesmo assim, quando falamos de África, todo um imaginário do senso comum prevalece e é acionado. Pensamos na natureza africana, com seus animais soltos nas planícies: os leões, girafas e elefantes por exemplo (não vamos falar aqui das possibilidades de extinção), mas imaginamos também os diversos conflitos étnicos, políticos e militares, assim como a pobreza, a violência e a fome. Tudo converge para uma idéia de um continente onde predomina um "estado primitivo", "incivilizado". Isso se reflete diretamente naqueles que, vivendo distantes do local de origem, possuem na cor a marca desse continente, sendo identificados como "negros", "africanos" e/ou "afro-descendentes".
Semelhante construção não se deu de forma aleatória, muito ao contrário, ela faz parte de um processo histórico. O pan-africanismo de Crummell seria apenas uma parte desse movimento e que passou despercebido da maior parte da sociedade brasileira e dos centros universitários. Ao longo dos últimos cinco séculos aproximadamente, desde a ocupação e integração da África no processo de expansão européia pelo Atlântico e domínio da América, o continente africano passou a ser retratado predominantemente como um espaço onde havia uma cultura inferior e um grau de "desenvolvimento civilizatório" atrasado diante do rumo que a "civilização européia" tomava. Essa imagem vem sendo reiteradamente recriada e reinventada, mas mantendo suas principais linhas de força.
Isso também contribuiu para que ainda se entenda atualmente "África" como se o continente fosse homogêneo, consubstanciando-se numa unidade de sociedades "negras", iguais, mas em permanente conflito, processo que nega e encobre a sua extrema diversidade cultural existente no continente.
Certamente o longo processo de ampla escravização de parte de seus habitantes pelos europeus aliados aos próprios africanos, e as condições desumanas a que foram submetidos, contribuiu fundamentalmente para a construção de um imaginário sobre o "negro". De uma maneira geral, essa história aponta, até hoje, para uma inferioridade dos habitantes da África e do grau de "civilização" dos mesmos.
Nesse sentido, para se compreender o processo de construção do preconceito e de exclusão a que ainda são submetidos as pessoas afro-descendentes, torna-se fundamental compreender a imagem que foi sendo atribuída a África e, a partir dai, desconstruir e trazer à tona os mecanismos históricos que foram compondo este imaginário.
A Escravidão
A África, no período que antecede às grandes navegações do século XV, era, de uma maneira geral, ocupada ao norte pelos muçulmanos e, no centro e no sul, por uma população que estava separada em diversas tribos e impérios maiores, bastante desenvolvidos, com intenso fluxo comercial interno e externo. O deserto do Saara era o divisor natural dessas regiões: o norte e a região subsaariana.
A escravidão vinha sendo praticada desde tempos antigos, tendo um importante papel na economia do continente. Era bastante difundida, tendo nas leis africanas o estatuto de propriedade privada reconhecida que produzia rendimentos e, por outro lado, não havia propriedade particular da terra. Isso significa que uma maneira eficiente de se investir em formas produtivas de riqueza não seria a compra de terras (pois não havia propriedade privada desta) mas sim a de escravos. Segundo John Thornton, que escreveu o livro A África e os Africanos na Formação do Mundo Atlântico (1400 – 1800), essa diferença entre a Europa e a África "deu origem à idéia de que os escravos africanos eram bem-tratados ou pelo menos mais bem tratados do que os europeus" (p. 141), mesmo que isso fosse resultante de interesses econômicos, uma vez que, na África, os escravos eram o bem principal.
Thornton procurou demonstrar, entre outras coisas, que não foi a chegada do Europeu que intensificou o processo de escravização na África. Pelo contrário, os escravos eram encontrados em todas as partes do continente, desempenhando diversos tipos de tarefas, sendo facilmente negociados. Não só o seu comércio era intenso mas também de toda sorte de produtos, ligando africanos, árabes e europeus. O autor procura enfatizar a autonomia e abrangência do mercado interno e externo africano e desconstruir a idéia de que os processos econômicos e políticos que ocorreram na África após os contatos com os europeus foram determinados por estes, submetendo uma cultura "inferior", despreparada frente aos novos interlocutores.
O tráfico de escravos passou a ser uma atividade exercida por mercadores negros e europeus, intensificando-se amplamente após a conquista da América. No caso específico brasileiro, as tentativas malogradas de se escravizar inicialmente em massa as populações de índios não apresentaram os resultados esperados – apesar de uma parte ter se tornado cativa, trabalhando nas propriedades portuguesas – e a grande parte fugiu para o interior ou morreu com as novas doenças trazidas do além mar. A opção pelo tráfico de escravos africanos passou a ser mais viável, somando-se a isso a rentabilidade que proporcionaria aos traficantes.
Mas, se na África, a condição do escravo era mais favorável (ou menos violenta por ser este o principal bem econômico produtivo privado) do que aquela que iriam encontrar os negros que seriam vendidos na América, nem por isso, deixou de ter um efeito perverso sobre os africanos. Não adianta aqui estimar uma espécie de graduação de desumanidade das diferentes escravidões. O que passou a se operar foi que o "negro" ou o "afro-descendente" começou a ser visto como sinônimo de seres humanos – de uma raça – em estágio evolutivo inferior, processo esse que culminaria na exacerbação científica criadora do racismo como o fundamento de uma "verdade": os brancos são superiores que as demais "raças".
Esse quadro é elucidativo para se compreender como se desenvolveram as relações entre Europa e África entre os séculos XV ao XVIII. Inicialmente os europeus encontraram estados soberanos fortes e uma estrutura econômica e comercial que não podia ser subjugada. Assim, tiveram que estabelecer missões diplomáticas, fazer alianças, oferecer amizade, procurar privilégios e se adaptar ao próprio ritmo africano. Foi praticamente apenas no século XIX que as potências européias passaram a abrir caminho na África através da força e a empreender o domínio do continente, e isso ocorre concomitantemente com a criação de uma teoria científica que se difundiu pregando a inferioridade do negro e das demais "raças".
Tal imagem do "negro", assim como a do país "África", passaria a ganhar um novo sentido, pelo qual seus habitantes e descendentes seriam vistos como tendo "naturalmente" qualidades físicas, intelectuais e morais inferiores. E isso era "verdade" pois a própria ciência o demonstrava. Surgia o racismo científico.
O racismo científico e a miscigenação
O caso específico brasileiro do negro escravo, distante daquela realidade africana – onde era visível a força de igualdade que possuíam os africanos nas relações com os europeus –, era visto apenas como uma ferramenta de trabalho, um bem material no processo de exploração da terra. Para os colonizadores e fazendeiros pouco ou nada importava a cultura africana.
Essa condição inferior, aliada a estrema violência dos maltratos que recebiam, forjou uma cicatriz profunda que se desdobrou na construção do estigma da pele negra. O século XIX veria florescer no Brasil uma imagem simbólica do negro, oriundo e/ou descendente da África: um ser naturalmente inferior e perigoso tendo na sua terra natal a origem dessa constituição. Logo, se poderia deduzir que: a África produzia seres inferiores.
As idéias do racismo científico, gestadas e desenvolvidas na Europa ao longo do século XIX, rapidamente aportaram na América. No Brasil alguns intelectuais logo trataram de recepcioná-las. Isso ocorreu por volta da década de 1870, quando o ideário cientificista e evolucionista já estava consolidado em parte dos intelectuais nacionais e, ao mesmo tempo, instituições como museus etnográficos, institutos históricos e geográficos, faculdades de direito e medicina já haviam sido instaladas.
No excelente trabalho de Lilian Moritz Schwarcz, O Espetáculo das Raças – cientistas, instituições e questão racial no Brasil: 1870 – 1930, podemos acompanhar a trajetória dessas idéias que vieram da Europa e foram readaptadas, aqui no Brasil, pelos nossos intelectuais, em consonância com as preocupações que o crescente número de alforrias e a proximidade de uma evidente abolição da escravidão punham em pauta.
"Em meio a um contexto caracterizado pelo enfraquecimento e final da escravidão, e pela realização de um novo projeto político para o país, as teorias raciais se apresentavam enquanto modelo teórico viável na justificação do complicado jogo de interesses que se montava. Para além dos problemas mais prementes relativo à substituição da mão-de-obra ou mesmo à conservação de uma hierarquia social bastante rígida, parecia ser preciso estabelecer critérios diferenciados de cidadania." (p. 18).
A adaptação que os "homens de sciência" realizaram aqui no Brasil – não sem gerar grandes discussões e polêmicas – foi a de unir a idéia de hierarquia e diferença racial (oriunda do darwinismo social) com idéias sobre a evolução e aperfeiçoamento das civilizações (oriundas do evolucionismo social), resultando, segundo Schwarcz, numa solução original, que via na miscigenação um caminho evolutivo para o povo brasileiro, e que acabaria por desembocar num "branqueamento" da raça, como apregoavam alguns intelectuais.
Esses conceitos tiveram ampla recepção no direito e na criminologia que procurava encontrar e determinar os tipos de criminosos natos. Seria como se fosse possível descobrir uma espécie de gene do crime através de estudos causais. Surgiu atrelada a essas concepções o conceito de "classes perigosas", presente na literatura européia desde 1840 e que foi tema de debate no Brasil, na Câmara dos Deputados em 1888, logo depois da abolição da escravatura. As "classes perigosas" foram rapidamente identificadas às classes pobres, sendo seus integrantes definidos como: malfeitores, criminosos, viciados, indigentes, prostitutas, bêbados, etc. Uniam-se os conceitos de pobre e perigoso num único estigma. Daí, para englobar os negros no conceito de classes perigosas foi um passo. Esse processo de culpabilização do negro foi fundamental como instrumento de coerção, tanto antes da abolição, incidindo principalmente naqueles que eram aqui africanos livres – como salientou Beatriz G. Mamigonian no artigo O Direito de ser Africano Livre – quanto depois da abolição, para se controlar a força de trabalho.
Sidney Chalhoub, na obra Cidade Febril – cortiços e epidemia na corte imperial, escrevendo sobre o tema, esclarece que a adoção do conceito de "classes perigosas" no Brasil se fez transformando os negros nos suspeitos preferenciais: "Na escravidão, em última análise, a responsabilidade de manter o produtor direto atrelado à produção cabia a cada proprietário/senhor individualmente. Este organizava as relações de trabalho em sua unidade produtiva através de uma combinação entre coerção e medidas de proteção e 'recompensas' paternalistas (...) Com a desagregação da escravidão, e a conseqüente falência das práticas tradicionais, como garantir que os negros, agora libertos, se sujeitassem a trabalhar para a comunidade da acumulação de riquezas de seus senhores/patrões?" (pp. 23 – 24).
A solução foi torná-los "perigosos a priori" e manter uma constante vigilância policial como nova estratégia de repressão. Esta seria a principal ferramenta de educação e higienização da nova sociedade republicana. Este tema passou a constituir interesse central para os intelectuais brasileiros que procuravam refletir sobre a população brasileira e suas características específicas.
A imagem da África pelos intelectuais brasileiros
"O negro não é só uma máquina econômica; ele é antes de tudo, e malgrado sua ignorância, um objeto de ciência" (Silvio Romero, Estudos sobre poesia popular no Brasil, 1888).
Do final do século XIX em diante, diversos intelectuais brasileiros passaram a publicar obras que tratavam do tema da raça, do negro e da população brasileira de uma maneira geral. Essa preocupação advinha, inicialmente, das questões suscitadas pelo instrumental da ciência que se dizia capaz de compreender as diferenças humanas através de categorias deterministas. Porém, ao mesmo tempo em que esses homens de ciência tratavam de descrever o negro no Brasil, acabavam por criar, na maioria das vezes, também, uma imagem correlata da África. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que falavam do negro, formavam um imaginário sobre o continente africano, reinventando e alimentando constantemente uma interpretação da África que, umas mais, outras menos, difundir-se-iam no senso comum.
Nina Rodrigues, nascido em 1862, foi médico e antropólogo. Um dos fundadores da antropologia criminal no Brasil, foi também precursor dos estudos sobre os negros. Escreveu em 1894 As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil, onde afirma que a raça branca é a mais culta do gênero humano porém "a crença de que os povos negros mais cultos repetem na África a fase da organização política medieval das modernas nações européias, não justificam as esperanças de que os negros possam herdar a civilização européia e, menos ainda, possam atingir a maioridade social". Com isso, não só limitava as possibilidades "civilizatórias" dos negros, mas, também, criava uma imagem da África como sendo um continente incapaz de evoluir e atingir uma sociedade "moderna" ou, como disse, uma "maioridade social". Tornava a África, dessa maneira, fadada a ser um continente incivilizado e atrasado, o que justificaria as intervenções que os "brancos" porventura fizessem naquele continente.
Noutra obra, de 1906, intitulada Os Africanos no Brasil (que só veio a ser publicada em 1933), explica que na África, "onde a intervenção dos europeus não conseguiu diminuir sequer a escravidão", demonstra o quão infrutíferas seriam as tentativas civilizatórias naquele continente. Conclui que se "conhecemos homens negros ou de cor de indubitável merecimento e credores de estima e respeito, não há de obstar esse fato o reconhecimento desta verdade: que até hoje não se puderam os negros constituir em povos civilizados". E explica, por fim, que a raça negra "no Brasil, por maiores que tenham sido os seus incontestáveis serviços à nossa civilização, por mais justificadas que sejam as simpatias de que a cercou o revoltante abuso da escravidão (...) há de constituir sempre um dos fatores da nossa inferioridade como povo".
Silvio Romero, nascido em 1851, foi crítico, escritor, ensaísta, político e historiador da literatura brasileira. Publicou em 1888 a obra História da Literatura Brasileira onde deixa entrever que as contribuições literárias do português são muito mais importantes e profundas do que uma possível origem africana ou indígena na nossa cultura: "Mas seria verdade que os selvagens e os africanos possuíram uma poesia, que haja passado às nossas populações atuais? (...) Incontestavelmente o português é o agente mais robusto da nossa vida espiritual. Devemos-lhe as crenças religiosas, as instituições civis e políticas, a língua e o contato com a civilização européia. Na poesia popular a sua superioridade, como contribuinte, é, portanto, incontestável". Em obra póstuma, intitulada Teoria, crítica e história literária (1978), encontramos outra passagem que corrobora a mesma idéia: "O elemento mais progressivo tem sido o branco (...) A história o prova; ela nos mostra a inteligência e a atividade mais especialmente residindo no branco puro ou no mestiço; e nunca no índio ou no negro". Aqui, além de podermos vislumbrar a importância que era dada ao mestiço, uma vez que possuía cruzamento com o branco e, assim, obtinha um "status" mais próximo da "civilização" e da "cultura superior", fica clara a idéia subentendida sobre os habitantes da África: pouco inteligentes e sem capacidade cultural.
Completamos esse grupo de intelectuais nascidos ainda no século XIX, imbuídos, portanto, de um conhecimento de cunho positivista que acionavam os novos conceitos do racismo como ciência, com a obra de Oliveira Viana, intitulada Raça e Assimilação, escrita em 1932. O autor, nascido em 1883, foi jurista, historiador e sociólogo. Nesta obra, podemos entrever uma espécie de síntese que resultou da contribuição dos pensadores anteriores. Escreveu Viana: "No Brasil, a obra do caldeamento e fusão das raças não está ainda hoje inteiramente realizada: ainda subsistem em nossa população muitos elementos puros dos tipos étnicos fundamentais. Entre os negros, por exemplo, soltos pela lei da abolição, há quase meio século, na 'zona marginal' dos latifúndios, é possível que já não exista presentemente nenhum exemplar realmente puro, a não ser alguns raros reduces africanos, aqui chegados antes de 1850". Este estudo antropológico aparentemente neutro só pode ser entendido a partir da leitura de uma obra anterior do mesmo autor, de 1923, intitulada A evolução do povo brasileiro, na qual explica a sua interpretação sobre o valor dos tipos raciais definidos por ele como elementos puros e miscigenados: "pela limitação e mesquinhez de seus objetivos, esses exemplares mais seletos e excepcionais da raça negra não trazem nenhuma contribuição apreciável ao progresso da massa colonial, nem podem ser computados como elementos enumeráveis no conjunto de forças que têm impelido para diante a nossa civilização. Esta é a obra exclusiva do homem branco. O negro e o índio... não dão... às classes superiores e dirigentes, que realizam a obra de civilização e construção, nenhum elemento de valor."
Fica claro que para esse grupo de intelectuais e, de uma maneira geral, para toda uma geração de "homens da sciência", o que importava era exaltar, em primeiro lugar, o branco. Em segundo lugar, como conseqüência da miscigenação desse tipo europeu, viriam os mestiços, em processo de "branqueamento", adquirindo, por assim dizer, características civilizatórias. Por fim, ocupando o último lugar nessa escala, estariam os negros "puros", ou seja, aqueles nascidos na África (e para alguns também os índios). Dessa forma, a interpretação que esses cientistas procuravam consolidar era a de que, para um negro, nascer no Brasil, seria um primeiro passo em direção à civilização.
Essas interpretações contribuíram para solidificar os preconceitos raciais contra o negro na sociedade brasileira mas, também, e de maneira oculta e até mais perigosa justamente por ser velada, criavam uma imagem pejorativa do continente africano que, muitas vezes, passou despercebida até por aqueles que lutavam contra o racismo. E esse imaginário negativo sobre a África, aciona, permanentemente, como uma sombra, a discriminação para com os afro-descendentes, tudo em um processo de implicação dialética.
Como salientaram Carlos Serrano e Maurício Waldman na obra Memória D'África – a temática africana em sala de aula, não foram só os brasileiros – como apontamos aqui – que imaginaram a África, mas: "O imaginário europeu devotou para as terras africanas e para os seus habitantes um amplo leque de injunções desqualificantes, muitas vezes respaldadas pelos expoentes da chamada 'grande intelectualidade européia'. A África, condenada ao papel de espaço periférico da humanidade, além de considerada desprovida de interesse para a civilização, seria igualmente alheia a ela". (p. 21).
É importante, por fim, frisar que um estudo das invenções sobre a África criadas pelos intelectuais brasileiros ainda está por se fazer. Os autores citados e, ainda, Euclides da Cunha, Roquete Pinto, Gilberto Freire, Sérgio Buarque de Holanda, Manuel Querino, Luiz Vianna Filho, Darcy Ribeiro, dentre muitos outros, são intelectuais importantes a serem avaliados na construção do imaginário sobre o continente africano. Além disso, outros discursos, advindos de outros locais, como, por exemplo, o de Lima Barreto, formam, por assim dizer, um contra-discurso que se contrapõe a uma cientifização determinista e a racionalização da sociedade e dos seres humanos, possibilitando, portanto, outras conceituações da África.
O Ensino de História da África
A África, como qualquer outro continente, não pode ser visto como um ponto fixo, imutável, mas sim em permanente (re)construção. Os próprios intelectuais africanos travam um longo debate sobre sua identidade após o processo de descolonização. Nesse período, por exemplo, as línguas européias, como o inglês, o francês e o português, passaram, na maioria dos países, a se constituir em língua oficial, processo esse que não se deu por uma imposição, mas por uma realidade funcional.
No Brasil a imagem que temos da África é ainda extremamente negativa. E isso não se refere a pobreza, fome ou guerras que assolam o continente mas a uma construção histórica preconceituosa que identifica essas mazelas com a (falsa) "inferioridade" atribuída ao povo africano.
A educação tem um papel estratégico no debate. A Lei nº 10.639 de 09/01/2003 e o Decreto nº 4.886 de 20/11/2003 são importantes ferramentas nesse sentido. A primeira instituiu a obrigatoriedade da existência de um conteúdo programático focado na História da África e em sua cultura nas escolas e universidades brasileiras. O segundo estabelece uma política nacional voltada para a promoção da igualdade racial (PNPIR), passando por questões como a das políticas afirmativas e das ações voltadas a promoção da dignidade da cultura negra. Em ambas existe a possibilidade de se repensar o imaginário construído sobre o continente africano.
Um esforço em se percorrer a história das invenções sobre a África criadas por nossos intelectuais é fundamental, não com o objetivo de condenar alguém por suas idéias no passado, mas com o propósito de refazer o caminho pelo qual se construiu uma imagem negativa do continente africano – e, conseqüentemente, dos negros – e, a partir daí, ter elementos para construir uma nova imagem desse continente, sem aqueles preconceitos raciais e eurocentristas.
* Álvaro G. A. Andreucci é doutor em História pela USP (Universidade de São Paulo) e coordenador do NEPI – Núcleo de Estudos sobre Preconceito e Intolerância do CESUSC (Complexo de Ensino Superior de santa Catarina). E-mail: bareska@gmail.com
Referências Bibliográficas
APPIAH, Kwame Anthony. Na Casa de Meu Pai – a África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro, Contraponto, 1997.
CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril – cortiços e epidemia na corte imperial. São Paulo, Cia. das Letras, 1996.
MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. "O Direito de ser Africano Livre – os escravos e as interpretações da lei de 1831". In: LARA, Silvia H. e MENDONÇA, Joseli M. N. Direitos e Justiças no Brasil. – ensaios de História Social. Campinas, SP, Editora da Unicamp, 2006.
RUSSELL-WOOD, A. J. R. Escravos e Libertos no Brasil Colonial. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2005.
SERRANO, Carlos e WALDMAN, Maurício. Memória D'África – A temática africana em sala de aula. São Paulo, Cortez, 2007.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870 - 1930. São Paulo, Cia. das Letras, 1993.
THORNTON, John. A África e os Africanos na Formação do Mundo Atlântico, 1400 – 1800. Rio de Janeiro, Elsevier, 2004.
WESSELING, H. L. Dividir para Dominar: A partilha da África (1880 – 1914). Rio de Janeiro, Editora UFRJ, Editora Revan, 1998.

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